A coluna da semana passada falava sobre a qualidade sofrível de ser humano que anda com ambições de repovoar o planeta depois de acabar de destruí-lo. O texto trazia Elon Musk como exemplo dessa leva de ricos, brancos, conservadores, com pretensões nada novas de espalhar seus genes por aí, povoando o mundo com seus semelhantes, enquanto trabalha incansavelmente para explorar e, eventualmente, eliminar aqueles que não se parecem com ele ou que não compactuam com suas ideologias. Onde será que já vimos esse filme?
A coluna, confesso, era carregada de ranço por Musk. Ranço este coroado pela constatação de que, enquanto eu e muitos dos casais que conheço andam pensando 387 vezes antes de reproduzir (vide custo de vida exorbitante, sobrecarga física e mental, tempo curto e apocalipse em curso), o bilionário acaba de dar as boas-vindas ao seu 14º rebento.
Como de costume, depois de publicado, vou lá no site da Folha dar ibope a mim mesma e, de quebra, ler os comentários sempre muito heterogêneos. Nesta semana específica, a leva estava particularmente suculenta. Alguns compartilhavam do meu ranço por Elon, outros teciam críticas construtivas ao meu trabalho. Gostei particularmente da clareza e objetividade de um senhor cujo comentário de apenas duas palavras (“Texto horrível”) me desafiaram a seguir escrevendo para um dia ser digna do seu crivo. Mas, voltando à vaca fria, me atentarei hoje a um outro comentário que seguiu martelando na minha cabeça bem depois de fechado o computador.
Diante do meu ranço à sede reprodutiva de Musk e da minha torcida explícita e tendenciosa de que gente como ele contenha seus genes, recebi a seguinte réplica:
“Uai, mas ele não tem dinheiro pra pagar pensão?”
O questionamento se repetiu em outros comentários mais prolixos.
Realmente, não há como negar a verdade contida no questionamento. Se tem alguém com dinheiro para pagar pensão, é o homem mais rico do mundo. Mas me pergunto, honestamente, em que mundo que ter dinheiro garantiu que algum homem pagasse uma pensão justa e de bom grado? Pelo que ando vendo por aí, pai rico querendo se safar de pagar pensão dá mais que chuchu na serra. É um tal de esconder patrimônio, falsificar holerite, chantagear com pedido de guarda, tentar desmoralizar a mãe mesmo sendo ela quem de fato carrega a responsabilidade de cuidar da criança.
A legislação brasileira é considerada por muitos especialistas uma das mais rigorosas do mundo quando o assunto é pensão. E precisa ser, haja vista o tanto de gente querendo dar a volta em suas obrigações paternas. Mas, se por um lado, ter esse direito assegurado é uma vitória para as mães, a pergunta da leitora (sim, era uma mulher) me lembrou que ainda vivemos num mundo em que a barra para os pais é tão baixa que fazer o mínimo às vezes é visto como suficiente.
O mais perverso desse comentário, no entanto, não está no que ele diz, mas nas palavras inferidas, aquelas que não foram digitadas, mas estão ali. Afinal, se quem tem muito dinheiro pode ter mais filhos, quem tem pouco dinheiro não pode ter nenhum? Pois é. Se te deu um arrepio na espinha em pensar sobre isso, estamos juntas.
Sigo ferrenha defensora da boa pensão paga em dia, mas me sinto na obrigação de apontar que tem muita gente por aí ainda associando demasiado valor à capacidade de consumo, e pouco à capacidade de amar, de cuidar, de criar e de sustentar vínculos. E isso explica muita coisa sobre como o mundo anda hoje.
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