Na virada do ano, a principal autoridade de saúde dos Estados Unidos, o cirurgião-geral Vivek Murthy, pediu que os rótulos de bebidas alcoólicas viessem com um aviso dizendo que o produto pode causar câncer. A requisição vem na esteira de um alerta da OMS (Organização Mundial da Saúde) feito em dezembro de 2022, sinalizando que não há quantidade de álcool segura para o consumo.
São recomendações que parecem novidade. A sabedoria popular, baseada em um pequeno estudo francês de 1998, dizia que uma taça de vinho ao dia faz bem para o coração. Mas, segundo Joana Marczyk, psiquiatra do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo), cada vez mais estudos endossam a ideia que álcool faz mal —qualquer tipo e em qualquer quantidade.
Segundo o World Cancer Research Fund, um fundo mundial da pesquisa de câncer, quando o álcool é ingerido e suas moléculas são quebradas no corpo, formam-se alguns compostos químicos que podem danificar o DNA. Sabe-se, também, que causa cirrose, uma das possíveis causas de câncer no fígado.
O que justificava o consumo do vinho, segundo Marczyk, é uma propriedade que nada tem a ver com o álcool: o resveratrol das uvas. “Esses polifenois como o resveratrol são compostos antioxidantes que ficaram muito conhecidos. Eles aumentam o colesterol HDL, o chamado colesterol bom, e melhoram a função dos vasos sanguíneos.”
Os artigos também tentavam explicar a baixa mortalidade por doença cardíaca entre homens franceses, adeptos a um cardápio regado a vinho, a partir da dieta. Segundo os estudos, eles apresentavam fatores de risco como colesterol alto, diabetes, hipertensão e um alto consumo de gordura saturada –a baixa mortalidade, portanto, supostamente se explicaria pelo consumo da e suas propriedades antioxidantes.
O que se sabe hoje, porém, é que o resveratrol pode ser encontrado em diversos alimentos e bebidas —espinafre, chocolate amargo, morango, framboesa, aveia, quinoa… “Ou seja, conseguimos os benefícios sem a necessidade de consumir álcool”, diz Marczyk.
Para Patricia Almeida, hepatologista do grupo de transplante do Hospital Albert Einstein, não há rigor científico no estudo que ligou o vinho à melhora da saúde cardiovascular. “Não tinha desenho de estudo que nos fizesse recomendar o uso de álcool.”
A hepatologista diz que, nos últimos anos, se ampliou muito o corpo de pesquisa sobre os riscos associados ao consumo de álcool. Dados da plataforma PubMed mostram que 2024 mais de 8.000 artigos sobre o tema foram publicados em 2024 —em 2000, foram cerca de 2.100. Desde a década de 1970 existem artigos que indicam alguma ligação entre o consumo de álcool e o desenvolvimento de câncer.
Apesar do crescimento nos estudos, mais da metade dos americanos diz desconhecer que o consumo de álcool aumenta os riscos de desenvolver tumores, segundo uma pesquisa do National Health Institute.
“Hoje temos um entendimento mais claro que o álcool traz risco para doenças crônicas”, diz Marczyk. Ela cita hipertensão, riscos de AVC e de câncer.
O consumo de álcool pode levar, ainda, à dependência. Segundo Marczyk, a substância tem um potencial para tal, embora mais baixo que drogas como crack e cocaína. “O uso regular e em grande qualidade, combinado com fatores genéticos, ambientais e sociais, pode levar a um padrão de dependência ou abuso.”
O abuso, diz Marczyk, pode ser identificado a partir de um uso que já traz prejuízos, embora não tão significativos e com potencial de mudança de padrão de consumo. A dependência, por outro lado, envolve a dificuldade em suspender ou reduzir o uso.
“Quando falamos em dependência, falamos em comprometimento, perda de funcionalidade. Sempre tem um prejuízo claro, mesmo que a substância não esteja constantemente em uso. Pode ser uma pessoa que só usa no final de semana. Não é critério para diagnóstico se a pessoa bebe todos os dias, mas qual é o prejuízo do consumo.”
O consumo de álcool entra na rotina de forma despretensiosa e vai ficando, segundo Almeida. Ela afirma que médicos precisam questionar seus pacientes sobre o consumo de bebidas alcoólicas —mesmo que a condição investigada não seja diretamente ligada à substância.
A recomendação de evitar ou diminuir o uso de álcool enfrenta entraves, principalmente culturais, além de um forte lobby da indústria de bebidas —caso do esforço que entrou em ação na discussão sobre o “imposto do pecado” na reforma tributária. A medida quer sobretaxar itens prejudiciais à saúde, como álcool.
Almeida enfatiza a importância de alertas como o da OMS, que devem ser fortalecidos por governos. A médica afirma que “deve-se lidar com respeito, não trazer mais preconceito”.
“Se um paciente tem cirrose hepática, ele sofre preconceito pela associação ao consumo de álcool”, afirma. “Há uma visão de causa e consequência, como se a pessoa fosse responsável por isso.”