Leitor pergunta se é possível amar uma pessoa e desejar outra. Sim. E mais do que possível, é inevitável. O desejo é sempre dividido, nunca absoluto, monolítico. Como já nos lembra a psicanálise, o desejo é sempre desejo da falta. Lacan dizia que “o desejo é um fluir metonímico”, uma correnteza que escapa, se rebela, insiste em correr para além do que acreditamos ser seu leito natural numa busca incessante ao que aparenta ser seu objeto perdido.
Ao nos depararmos com nossa incompletude, mesmo no encontro com o outro, movemos nossas marés afetivas rumo a novas paixões e pulsões, numa tentativa incessante de tamponar essa falta. Tentamos, em vão, resgatar aquela sensação primordial de sermos tudo para alguém, como fomos (ou sonhamos ter sido) no olhar de nossa mãe. O delírio narcisista de voltar ao trono perdido de Vossa Majestade, o Bebê. Mas esse é um jogo perdido. Assim como é ilusório desejar apenas um único alguém —e ser seu único objeto de desejo.
Mas cortar o cordão umbilical emocional com nossas mães tem nos parecido mais fácil do que abrir mão da ideia de completude no amor, que já vem reforçada desde o discurso de Aristófanes em “O Banquete”, de Platão: “Em sua tentativa de fazer um só de dois e de curar a natureza humana procura cada um de nós o seu próprio complemento”. É como se pudéssemos suportar alguns anos de angústia e desamparo sendo “as filhas perdidas” pois nos foi prometido na voz de Fábio Júnior que em nossa vida adulta encontraríamos “as metades da laranja, dois amantes, dois irmãos”.
O amor romântico nos vendeu a ideia de que uma relação feliz e plena é uma relação onde o casal é autossuficiente. Assim, quando nosso desejo surge, sem razão e sem autorização, ou quando pressentimos que nosso parceiro deseja alguém além de nós, a angústia nos toma. Nos sentimos errados, em crise, em falta. Sim, sempre faltará algo. Mas faltas não são falhas. São condições humanas.
Mas permitir-se e permitir ao outro a liberdade de sentir é aterrorizante, pois a experiência desse amor dividido reedita nosso desamparo estrutural. Essa experiência de amor dividido é dolorosa porque reencena nosso desamparo estrutural. A cada desejo novo, a cada olhar escapulido, algo de uma perda primitiva se atualiza. E, em tempos onde já perdemos muito, nos vemos cada vez mais acuados e inseguros. Em vez de nos prepararmos para as mudanças de maré como parte do fluxo afetivo, paralisamos ante as ondas de desejo.
O fato é que todo amor nos devolve à experiência da incompletude, e o desejo por outro alguém apenas dá um rosto a esse fantasma. Criamos fantasmas porque não suportamos encarar o desejo como ele é: um elemento vivo, pulsante, que se manifesta em sonhos, olhares, imaginações. E, como bons parceiros, aprendemos a silenciar esses pensamentos e reprimir nossas pulsões para proteger a relação. Ao abafar algo que é natural estamos asfixiando nossa possibilidade de existir.
O surgimento de um desejo para além da relação não é um sinal de crise conjugal e sim um acender de luzes que nos faz enxergar nossa condição humana e nos convida ao duro exercício de abrirmos mão do mito original: assim como não éramos um só com nossas mães, também nunca fomos um com nossos parceiros. Nunca existiu esse estado de segurança, plenitude e completude onde o outro nos habita por inteiro. O desejo não trabalha com inteiros –ele se espalha, se fragmenta. E essa fragmentação não necessariamente vai quebrar seu amor em pedaços, desde que se permita o livre curso das emoções.
Precisamos ter a coragem de normalizar a presença de um terceiro entre nós —nomear sua existência para que este seja espaço de fantasias, não de assombração. Nada nos protegerá da angústia. O desejo é atrelado a ela, pois está diretamente ligado à falta. A tentativa de conter a angústia com um contorno moral apenas suprime o desejo e nos sufoca ainda mais.
Recentemente entrevistei o psicanalista Leonardo Goldberg sobre desejo e falta. Ele citou uma frase de Lacan: “O desejo é desejo cornudo”. O neurótico deseja como um corno, pois o desejo sempre se estrutura em triangulação. Onde há dois, há três. Mesmo em relações monogâmicas e fiéis, sempre existe um terceiro imaginado: disputamos nosso parceiro em nossa própria fantasia, sentimos prazer em sermos desejados por outro, fantasiamos incluir um terceiro no jogo sexual.
Ter desejos e fantasias não significa realizá-los. Mas para que as relações sejam saudáveis, devemos parar de moralizá-los. Há em nós uma dimensão amoral que precisa ser respeitada. O desejo é da ordem da transgressão, e em algum lugar é preciso se autorizar a transgredir, ao menos na fantasia.
Te convido a parar de higienizar o amor, esterilizar a relação e hiperprodutivizá-la na esperança de ser amado por oferecer tudo ao outro. Precisamos fazer as pazes com um amor ambivalente: que ama e não ama, deseja e não deseja, quer proximidade e distância. Abrir mão do julgamento e da punição nos convida a encarar nossa incompletude com mais acolhimento. O desejo do outro é desejo do outro. Seu desejo é seu desejo. Ele não surge porque falta algo no outro. Sim, falta algo no outro assim como falta em você. E sempre faltará. A chave para uma relação mais prazerosa não é tentar se tornar sua melhor versão para suprir todas as necessidades do amado, mas aceitar que não há culpados nem razões.
Precisamos parar de olhar para nossas faltas como fracassos, crises a serem administradas, projetos a serem geridos. É urgente abandonar a culpa quando um desejo fora da relação surge. Ainda recorremos à culpa porque, onde há culpa, há controle. E nos parece mais fácil nos punir do que lidar com a angústia do descontrole e da desconstrução do mito primordial.
A falta é estruturante, não desestruturante. O desejo não precisa ser controlado, apenas compreendido sem medo ou moralismo. Desejar outra pessoa enquanto amamos alguém não é falta de amor ou desrespeito. Pelo contrário, é respeitar nossa natureza errante e fluida. Até porque sentir não é fazer. Existe um espaço entre o que sentimos e o que fazemos —e é nesse espaço que mora a nossa liberdade.
E se você também tem um dilema ou uma dúvida sobre suas relações afetivas, me escreva no [email protected]. Toda quarta-feira respondo a uma pergunta aqui.
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