“Aprenda a ficar bem sozinho” e “quando você parar de procurar vai aparecer alguém” são dos conselhos mais cruéis que um solteiro pode receber. Então, começo com uma verdade libertadora: isso é mentira! Mas não quero trocar uma universalização por outra. Quero provocar uma reflexão sobre a lógica desse ensinamento: o pressuposto de que “estar bem” é ser autossuficiente e a patologização do desejo.
“Eu me amo, eu me basto” é inclusive outro clichê, como se atingir um Olimpo do amor próprio fosse condição para atrair um ser igualmente iluminado, que não trará nenhuma demanda, desejo ou incômodo. Queremos mesmo acreditar nisso? Por quê?
Nenhum de nós se basta. Se há algo que a psicanálise nos ensina é que somos seres faltantes. Desde que nascemos, somos lançados no mundo com um desamparo estrutural: precisamos do outro para sobreviver, nos constituir e dar sentido à nossa experiência. O desejo, longe de ser um problema a ser eliminado, é justamente o motor da vida psíquica. O que nos move é sempre uma falta, uma busca por algo que nos escapa, mas que nos mantém em movimento. Isso não é um erro, nem um sinal de que ainda “não aprendemos a ficar bem sozinhos” —é a nossa condição humana.
Mas talvez, para nós, ser humano seja demasiado humano, como diz Nietzsche – e isso nos pareça pouco. Queremos suplantar as faltas, ser sobre-humanos na esperança de atrair grandes amores. “Aprender a ficar bem sozinho” rapidamente se torna um hiperinvestimento em si como estratégia para atrair bons partidos.
Como se fôssemos produtos no mercadão dos afetos, supomos que mais atributos significam mais chances de sermos escolhidos. Ainda tememos que nossas faltas pareçam falhas, como se desejar fosse impor uma demanda ao outro —que mal nos conhece, já carrega seus próprios fardos e provavelmente ainda não está envolvido o suficiente para abrir espaço mental e emocional para atender às suas vontades.
O desejo vira então um atestado de carência sentimental e de autonomia. Seres desejantes seriam produtos de alta manutenção, algo que caiu em desuso nos tempos de eletrodomésticos autolimpantes e eletrônicos com atualização automática. Mas podemos questionar essa lógica do consumismo afetivo e ouvir Lacan: “Pode-se amar alguém não só por aquilo que tem, senão, literalmente, por aquilo que carece”. Amamos os outros por suas faltas, vulnerabilidades e desejos. Não precisamos ser completos para sermos dignos de amor. E falar das nossas faltas não significa que esperamos que o outro as complete.
Desejar um relacionamento, portanto, não só não é sintoma de fraqueza ou de falta de amor próprio como também não deveria ser visto como algo que exala pelos poros como um odor incontrolável —uma espécie de sinal de alerta biológico que precisaria ser disfarçado para não afugentar possíveis parceiros. Mas, se você é mulher, já deve ter ouvido: “Será que ele não percebeu que você queria algo sério e por isso a história desandou?”. E o pior, de tanto ouvir, talvez tenha até começado a se perguntar se seu desejo de estar com alguém operaria como uma espécie de feromônio às avessas —não um atrativo, mas um repelente involuntário.
Querer ter alguém é bem diferente de precisar ou depender de alguém. E se autorizar a falar sobre isso não significa que nossas faltas são menos bem resolvidas que as dos solteiros convictos ou casados felizes. É absolutamente possível gostar da própria companhia e, ao mesmo tempo, desejar um relacionamento. Porque gostar de si não significa estar sempre bem —porque ninguém está. Há dias em que a solidão pesa, e isso não significa fracasso. A vida não se resume a um estado estático de plenitude individual, mas a um fluxo constante de encontros, desencontros e reconciliações —tanto com os outros quanto com nós mesmos.
Que possamos aceitar que na solitude também habita o desejo de companhia como parte de sua existência e não como falha na sua coerência. Que possamos fazer as pazes com nossos desejos conflitantes, com nossas emoções oscilantes e com nosso desamparo. Que nos permitamos demonstrar nossos desejos sem pudor e tenhamos coragem de não receber os desejos alheios como tarefas. São só desejos, pulsões de vida, de conexão, de alguém tão faltante quanto você, que ao te desejar não espera que você elimine todas as suas faltas. Ninguém vai. Não precisamos fazer essa lição de casa prévia nem delegá-la ao outro. Mas, se tivermos sorte, podemos encontrar um espaço de troca, construção e compartilhamento de imperfeições. E isso, por si só, já é muito.
E se você também tem um dilema ou uma dúvida sobre suas relações afetivas, me escreva no [email protected]. Toda quarta-feira respondo a uma pergunta aqui.
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