Para esta coluna estar no ar hoje, domingo (2), seu texto teve que ser entregue às 11h, dez horas antes do início da cerimônia do Oscar.
Prudente seria escrever sobre qualquer tema frio, como dizemos no jornalismo. Mas Carnaval e Oscar —além da laringite aguda que tem afligido meu filho— são os assuntos nos quais pulsa a minha atenção e, portanto, a minha escrita.
Com a purpurina resistente a banhos brilhando na perna, registro o que o mundo todo já sabe. Fernanda Torres está premiada. “Ainda Estou Aqui” é vencedor. Espero que a Academia do Oscar tenha admitido isso. Mas mesmo que não tenha, a vitória é nossa.
Seis anos depois da morte de dona Eunice Paiva, a atuação de Fernanda Torres, dirigida por Walter Salles, espalhou a história de uma de nossas heroínas pelo mundo. Meus filhos adolescentes se aproximaram da compreensão do quão violenta e perversa foi a ditadura. A escrita em primeira pessoa de Marcelo Rubens Paiva está sendo lida e debatida. Lembrar está na ordem do dia. Ganhamos todos.
Há mais pessoas lendo e assistindo a filmes sobre a ditadura. A violência do período é reafirmada como inaceitável, constrangendo os que louvam a tortura.
A dor da família Paiva, comunicada pelo olhar de Fernanda, foi e é sentida por quem amava as 434 pessoas mortas e desaparecidas oficialmente segundo a ditadura, além das 8.000 pessoas indígenas e ribeirinhos e das centenas de milhares de pessoas negras que foram assassinadas no período.
Perceber o horror pelo que viveu a família Paiva nos abre a possibilidade de indignação pela política de morte que o Estado brasileiro segue praticando. Rubens Paiva desapareceu nos porões da ditadura. Amarildo e Davi Fiuza, nos porões que perduram em nossa democracia.
“A tática do desaparecimento político é a mais cruel de todas, pois a vítima permanece viva no dia a dia”, escreveu Marcelo Rubens Paiva no livro que deu origem ao filme. “Mata-se a vítima e condena-se toda a família a uma tortura psicológica eterna. Fazemos cara de fortes, dizemos que a vida continua, mas não podemos deixar de conviver com esse sentimento de injustiça.”
Rute Fiuza, mãe de Davi, vive o terror de ter visto seu filho de 16 anos sair para jogar bola e nunca mais voltar para casa. Em 2014, Davi foi levado por policiais militares na periferia de Salvador. Assim como a Eunice esposa, a Rute mãe busca justiça e se dedica a nos fazer lembrar de Davi e dos desaparecimentos de negros e de pobres, ainda tão frequentes.
Mas lembrar, e falar, e ver a nossa dor contada na tela do cinema nos dá força para continuar. Na esperança de que aquilo nunca mais aconteça. Por isso ganhamos.
Eu, que nunca fui de pular Carnaval, vou ali colocar meu maiô roxo, minha meia arrastão e muito glitter para dançar a alegria nas ruas. Obrigada, Eunice. Obrigada, Rute. A vida presta.
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