Era o último ano do Ensino Médio. Era o começo da vida em uma nova cidade, em que eu nunca tinha pisado antes. Mas me adaptei rápido. Em pouco mais de um mês, tinha novas grandes amigas e um namorado.
A vida ia muito bem, apesar de toda a pressão que envolve o vestibular. Gostava do colégio, gostava de estudar, sabia a faculdade que queria fazer, morava em um lugar legal, dinheiro não era problema, eu não tinha questões com a minha aparência e me sentia muito feliz.
Até que chegou setembro.
Éramos um grupo de amigas e agregados num evento grande da cidade. Fui embora antes. Não me lembro ao certo o motivo, mas enviei uma mensagem a uma delas perguntando se estava tudo bem. “Não. O namorado da J. sumiu”.
Fiquei preocupada, mas dormi. Não me lembrei do assunto quando acordei no dia seguinte. Eu me lembro do sol entrando pela janela e de estar animada. Vestia uma saia branca e uma camiseta amarela de ficar em casa. Não pretendia sair tão cedo e nem prestei atenção quando o telefone tocou.
Quem atendeu o telefone fixo foi minha mãe. Era uma amiga que não estava no grupo da noite anterior. Ela informava que o namorado sumido da J. agora estava morto.
Ainda não tinha processado a notícia, quando o telefone tocou novamente. Dessa vez, era a própria J. Uma adolescente apaixonada tinha acabado de perder o namorado. Nós tínhamos 17 anos. E ela decidia recorrer a mim.
Vinte anos depois, em um momento difícil do puerpério, lembro-me de voltar àquele dia e pensar que tinha sido a única vez que me senti tão responsável por resolver o choro de alguém, como novamente me sentia, agora com meu bebê.
Cheguei à casa da J. o mais rápido que consegui. Ela estava deitada na cama, familiares ao redor. Perguntava por que o namorado não a tinha levado junto. A dor dela não tinha tamanho. Deitei por cima para abraça-la e repeti: vai passar, eu prometo que vai passar. Eu não fazia ideia se ia mesmo passar.
Minha lembrança seguinte é já no velório. Pessoas comentando se havia sido acidente ou suicídio. Amigos contando casos engraçados daquela vida tão precocemente interrompida. J. falando do pingente de sol e lua que o namorado havia dividido com ela.
Depois desse fim de semana, como se a morte fosse um suspiro inofensivo no meio de um dia qualquer, estávamos sentados aprendendo química orgânica e números complexos. Provavelmente, algum professor lamentou a nossa perda de uma forma que não foi suficiente para ficar na minha memória.
Quando a J. voltou às aulas, fizemos um combinado. Eu ficava lá assistindo história e geografia para depois passar as matérias para nosso grupo de amigas. Enquanto isso, elas pulavam a janela de alguma sala vazia da escola e tentavam elaborar aqueles lutos que não pareciam ser preocupação de mais ninguém. Eu me sentia culpada. J. e eu tínhamos começado nossos namoros mais ou menos ao mesmo tempo e dividíamos a felicidade daquele momento típico da adolescência. Não era justo que só eu continuasse nele.
Minha mente fez todo o trabalho necessário para que eu começasse a me sentir infeliz também. Foi minha primeira crise depressiva. Eu saía de casa com muito esforço. O único momento em que não me sentia péssima era enquanto dormia. Mas quando acordava estava sempre pior.
Minha mãe marcou uma terapeuta, com quem nunca falei sobre a morte do T. Eu não reconhecia um luto em mim. Não éramos amigos, nossa proximidade se resumia à nossa ligação com a J. Provavelmente, eu me sentiria uma impostora se assumisse a posição de enlutada. Esse papel não era meu.
Mas era isso que eu estava vivendo. Um luto. Nós éramos meninas e meninos novos demais para encarar um trauma daquele tamanho sozinhos. Se 24 anos depois acho difícil lidar com a perda repentina de alguém, imagina estar com uma pessoa em um momento de alegria e, duas horas depois, essa pessoa simplesmente não existir mais.
Não é apenas que nossas dores adolescentes são subestimadas; é que, muitas vezes, nós ainda não sabemos dar nomes a elas. Se não houver um adulto consciente que pegue na nossa mão e nos ajude a verbalizar e encontrar as relações que ainda não temos maturidade para entender, elas não vão se explicar sozinhas. E uma infinidade de sentimentos e influências ruins tomará conta desse espaço. No meu caso, foi a culpa que destruía todos os meus dias, mas apenas os meus, como uma vespa: por dentro.
Em outras pessoas, esses sentimentos serão diferentes. Algumas tentarão apenas sobreviver com suas dores da idade mascaradas pelas vulnerabilidades sociais. Pode haver quem passe quase ileso pelas complexidades da adolescência. Pode haver até quem não tenha memórias particulares dessa fase.
Mas, possivelmente, bem mais gente do que imaginamos não apenas terá experiências muito difíceis, tal qual a minha, como estará a um passo de comprometer alguma vida – nem sempre a própria.
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